A cidade não dormiu naquela noite. O engarrafamento da via principal era enorme. O tráfego era humano. Algo parecido com uma Olimpíada. A mobilização era estranha e inédita, dirigida a todos os enfermos do corpo e da alma. Doentes de toda a espécie e endemoninhados aguardavam o momento desejado de uma cura acalentada. Era um encontro pouco comum, numa hora pouco comum para os habitantes do local e num local também pouco comum. Todos esperavam libertação mas poucos aguardavam conscientemente o cumprimento da promessa de Isaías 53.4 - "Verdadeiramente Ele tomou sobre Si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre Si" O escritor Mateus vê neste acontecimento o cumprimento desta profecia. E ainda que a crença não fosse generalizada, o que poderia perder um doente que sempre confiou nos médicos sem obter uma resposta positiva, se não experimentar o poder milagroso do Messias que agora era anunciado? Nunca nada semelhante havia jamais acontecido na "vila de Naum", no hebraico. No grego, Cafarnaum, onde a fama de Jesus foi célere e de modo tal que atraiu toda a circunvizinhança da Galileia, conforme nos especifica Marcos em 1.28.
De toda a descrição sinóptica do facto narrado nestes poucos versículos, Marcos é, como sempre, o escritor que nos fornece mais pormenores. A esta altura da descrição do Ministério de Jesus, na óptica de Marcos, tudo indica que já se tornara difícil para ele descrever todos os sinais e milagres que até esta altura da narrativa Jesus tinha feito. Resumindo a ordem dos milagres, por descrição de Marcos, a "cura do endemoninhado de Cafarnaum" é o primeiro, de seguida a "cura da sogra de Pedro" e nos versículos analisados aqui, Marcos dá-nos a conhecer um aspecto notável do Ministério de Jesus que é a suficiência do Mestre na "cura colectiva". Ela não aconteceu de forma tão amiúde no percurso do Ministério de Jesus. O Salvador dedicava-se, tanto quanto possível, ao indivíduo, ao atender as suas necessidades e ao esclarecer as suas dúvidas. Ele preferia o encontro pessoal e a palavra dirigida ao necessitado com olhos nos olhos. Sim, mas a ânsia pela cura era tanta naquele fim de dia e a pressão sobre o Mestre, causada por uma necessidade atroz que corroía o povo daquele lugar, que levou O Salvador a atender de uma forma viva e quase geral às necessidades físicas e espirituais dos enfermos que se apresentaram. O misto dos necessitados, aqui separados em grupos, também este um aspecto curioso que Marcos deixa saliente, não deixa dúvidas na relação entre doença física e espiritual. Devido à ausência do poder da Palavra pregada pelos profetas, onde apenas a Lei procurava semear o coração dos homens durante um longo período de tempo, os males físicos acumularam-se. Sim, as doenças físicas eram também resultado do efeito das muitas almas ocupadas pelas forças das trevas, em corações desocupados de qualquer "substância" espiritual. Sem querer passar a impressão de que todo o mal físico tem origem espiritual, convém chamar a atenção para a relação que existe, a nível do ser, entre ambas as realidades: física e espiritual. Se é verdade que hoje se faz um uso desmedido da pregação a favor da cura dos males físicos, não será por isso que se perca a dimensão e o alcance dos efeitos espirituais nocivos causados na forma como as pessoas governam as suas vidas em áreas como o sexo, a alimentação, o divertimento, etc. O coração habitado pelo poder do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, produz no discípulo a piedade e a sobriedade em matérias de foro físico, resultado do mesmo efeito na área espiritual.
Marcos acrescenta um elemento curioso à narrativa, sendo ele o único que o faz. Ele preocupa-se em dar-nos este belo detalhe no versículo 33 "Toda a cidade estava reunida à porta". A que porta se refere Marcos? À porta da casa de Pedro, onde a sua sogra tinha sido curada e onde O Mestre havia de pernoitar? Para o investigador bíblico poderia colocar-se a possibilidade de este encontro com os doentes ter-se dado junto às portas da cidade, um lugar ainda comum para a resolução de algumas causas e problemas da população (foi aí que no passado os juízes começaram por julgar as causas do povo). Ao repreender a doença junto às portas da cidade, simbolicamente, naquele dia e naquele local, o Salvador estaria a julgar o poder das trevas. Ele estaria a aplicar a sentença sobre aquilo que havia governado o coração do povo de Deus durante os últimos séculos. Antes de vencer o poder das trevas, em definitivo, na Cruz do Calvário, o nosso Salvador desferiu, no decorrer do Seu Ministério, potentes golpes perante a grande limitação espiritual que absorvia o povo. Este foi um desses momentos. Marcos faz referência a outros?
O elemento que reforça a possibilidade de "esta porta" ser a da casa de Pedro, ou da sogra deste, aparece no texto perante toda a harmonia da descrição. Tudo indica que a cura da sogra de Pedro, ainda que tenha acontecido no contexto familiar, passou para fora de portas, a ponto da multidão de enfermos ter tempo de reunir-se junto à casa deste. Tudo indica que era sábado! Jesus e alguns dos seus discípulos tinham vindo da sinagoga e discutiam sobre algum assunto ali levantado enquanto se dirigiam para a casa da sogra de Pedro. Se assim for, Jesus "quebrou" a Lei ao curar a sogra de Pedro no sábado. Esta é uma evidência do cumprimento das palavras que o próprio Cristo haveria de proferir mais tarde aos fariseus que O interrogaram - "o sábado foi feito por causa do homem e não o homem por causa do sábado" (2.27) e "O Filho do Homem até do sábado é senhor" (Mateus 12.8). Mas enquanto que a cura aconteceu num círculo familiar e dentro de portas, não era possível ao judeu comum transportar os doentes em dia de sábado. É aqui que Marcos inclui um pormenor interessante ao dizer-nos que "sendo já tarde, tendo-se posto o sol, trouxeram-Lhe todos os que se achavam enfermos e endemoninhados". O povo de Cafarnaum esperou que o dia de sábado acabasse para que a oportunidade de cura acontecesse. Ao ver-se rodeado de tamanha multidão de doentes e endemoninhados, provavelmente clamando por Ele do lado de fora, O Mestre saiu e ali às portas da casa Ele curou os necessitados do corpo e da alma.
É às portas do coração que o nosso ser espiritual é julgado. É aí que o poder das trevas, ainda hoje tão notório, recebe o duro golpe da nossa fé e desaba por terra os intentos do mal. É às portas do coração que o triunfo se dá, porque uma vez alojado o mal nele, corre o risco de corroer as artérias da alma. Só o poder do nosso Salvador poderia resgatar as almas ocupadas, não apenas pelas evidências de uma humanidade que os dilacerava por dentro, mas também pela presença alojada dos demónios em tantos corações.
Fica a pergunta: "Porque Jesus impedia que os demónios falassem da Sua divindade?" Provavelmente porque a descoberta que o povo precisava fazer do Salvador carecia de uma investigação pessoal do desejo de ser salvo, de ser amado, de ser resgatado pelo próprio Deus. E Jesus recompensou todos aqueles que O desejaram buscar com um desejo ardente de procura. Foi assim com Zaqueu, o homem baixinho, desprezado e impossibilitado, que subiu a uma árvore carregando um desejo intenso de conhecer o Mestre. Acontecerá, hoje, com todos quantos tenham o ardente desejo de descobrir por si mesmos a verdadeira Pessoa de Jesus Cristo, para Dele receberem os favores eternos que atingem e influenciam o percurso terreno, enquanto seres com vontade de escolha.